24 de setembro de 2012


O jogo do anjo (Carlos Ruiz Zafón)

“A pessoa que a gente pensa que vê nada mais é que um personagem oco, e a verdade se esconde sempre na ficção”.
Até que ponto ficção e realidade podem confundir-se na vida de um autor? Essa pergunta sempre me intrigou de certa forma. Jorge Amado costumava dizer que “um escritor de verdade é aquele que escreve sobre o que viveu”, e de fato muitos escrevem sobre suas próprias cidades e transmitem a seus personagens traços de sua personalidade. Mas também há aqueles que se sacrificam, ou não, por sua obra. James Ellroy já admitiu que não tem celular e televisão para manter vivo a Los Angeles descrita em seus livros, e eu confesso que gostaria de saber o que outros escritores seriam capazes de fazer para dar mais realidade às suas obras.
Essa confusão entre ficção e realidade é vivida por David Martín, protagonista do livro O jogo do anjo, escrito por Carlos Ruiz Zafón e publicado pela Suma de Letras. Ele é um escritor fracassado, cujos únicos sucessos foram alcançados com pseudônimos ou então como um ghost writeranônimo do amigo Pedro Vidal. A vida do autor muda a partir do encontro com um estranho editor chamado Andreas Corelli, que lhe paga adiantado uma alta quantia em dinheiro pela encomenda de um livro de caráter religioso. Tal fato transforma a vida de Martín, e o coloca em uma rede de intrigas e mistérios desenfreados que o levam a um jogo perigoso e envolvente.
O ponto de partida é a casa onde ele mora, um antigo casarão repleto de mistérios dos antigos moradores: Diego Malarsca e Irene Sabino. A curiosidade de David é aguçada quando ele lê o livro de Diego, de teor muito similar ao que ele próprio está escrevendo. As similaridades entre a vida de ambos vão aumentando conforme ele descobre mais aspectos da morte do antigo morador, e que de alguma forma repetem-se em sua própria vida e vão enlouquecendo-no.
Não é novidade a maestria que Zafón tem para criar histórias de mistério e conduzir o leitor de maneira alucinante pela narrativa, fato marcante nesta obra que faz parte da tetralogia que contém ainda os livros A sombra do vento e O prisioneiro do céu – já publicados. Mesmo sem seguir uma cronologia, o que permite que eles sejam lidos separadamente, alguns cenários e personagens reaparecem neste livro, remetendo as outras duas obras. Assim encontramos a livraria dos Sempere, o Cemitério dos livros esquecidos e a hostil Barcelona do começo do século XX.
Além do mistério, há também amizades cativantes e uma história de amor proibido. Curiosamente esses mesmos dois aspectos também aparecem em A sombra do vento, na relação entre Daniel e Fermín e no amor entre Daniel e Bea. Em O jogo do anjo a amizade dá-se entre David e Isabella, o que rende ótimos diálogos irônicos e deliciosos entre os dois personagens. No campo amoroso, David e Cristina vivem um romance proibido, já que ela está casada com um amigo do protagonista.
Apesar das similaridades, é a finalização que marca a diferença, não apenas no desfecho da amizade entre David e Isabella e do amor entre ele e Cristina – que são chocantes -, mas no encerramento do romance. Fato esse que gera certa estranheza de alguns fãs do escritor, exatamente por criar muitas interpretações ao invés de um final único e imutável.
Particularmente eu gostei da finalização da trama, que cria a dúvida e gera muitas discussões por parte dos leitores que tentam entender se de fato o que aconteceu com David Martín foi fruto de uma alucinação ou sua própria ficção que se confundiu com a realidade. Óbvio que nem todos os “zafonadictos” – fãs de Zafón – ficaram satisfeitos, e alguns criaram sua própria lógica para o final, o que não deixa de ser curioso.
Confesso que essa multipolaridade do final ganhou pontos comigo. Durante a leitura do romance é inevitável não ficar preso à maestria narrativa de Zafón, mas em muitos aspectos o livro lembrava muito A sombra do vento, e a falta de novidades começou a soar-me cansativo. As mudanças foram bem-vindas, mostram um Zafón menos tímido, mais mórbido e ousado. Pena que tais aspectos não se repetiram em O prisioneiro do céu, mas esperamos que o melhor do escritor ainda esteja por vir na obra que conclua a tetralogia.
O jogo do anjo
Autor: Carlos Ruiz Zafón
Tradutora: Eliana Aguiar

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