18 de setembro de 2013

EMOÇÃO E COESÃO

                                            _ Esther Rosado _



Pegue uma linda e alvoroçada manhã; do fundo do coração, ah lugar comum entre os comuns, diga pra você mesmo que merece esta manhã existente entre o verde e o azul, esbranquiçada em nuvens, sobrevoada de pássaros, ameaçada por uma boa e passageira chuva , catabrrruuummmm!!! Enfie as mãos nos bolsos e assovie. Melhor que não haja mesmo bolsos... mas assovie alto, assim mesmo, forte, vê lá dentro aquela felicidadezinha que vai brotando, vem assim como se nem viesse e acaba ficando? Pois é... Guarde-a para você, divida-a com os outros.E, depois, sob a árvore da infância ( imaginada ou real árvore), declame o poema do anjo que sua mãe ensinou: "Meu anjo da guarda, fiel protetor, segure a minha mão, proteja minha alma, faça com que eu seja bom, dê-me amor e calma." 

Repita. As mais lindas orações são as que aprendemos na infância , quando ainda acreditávamos em coelhinho da Páscoa. Depois feche os olhos e pense nos beija-flores ( esqueça o plural de guarda-noturno, guarda-roupa e mula-sem-cabeça!), nas violetas azuis, nas orquídeas que nascem sob as grandes árvores, no bem-te-vi que grita assim: bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi... Também eu um dia bem que te vi.Invente uma bicicleta e tenha sempre a certeza de que um amigo, uma amiga, um amor possam olhar seu joelho ralado depois do tombo e dizer: deixa que eu passo mertiolato e assopro o machucado pra você. Se ouvir isso de alguém, jamais estará sozinho. 


Reinvente aquele momento em que você, aos doze anos, viu o mágico, a mágica, a magia; e , depois, de olhos fechados e rodopiando no meio do nada, lembre-se daquele instante em que sua mãe gritou, feliz demais, no meio da sala, trêmula: Ele leu, ele leu, ele leu, meu deus do céu! E você leu, ainda que atropelando as palavras, feito um gago, feito um homem tão distante de um elefante que, apesar da magnífica memória, o elefante, claro, jamais aprenderá a ler... 


Reinvente a primeira calça jeans, a escolha do primeiro sapato de saltos altos, o recebimento do primeiro salário, a primeira carta que recebeu, a emoção do primeiro e-mail, a primeira cobrança e a primeira vez que você viu o Chacrinha balançando a pança. O susto na praia: cadê minha mãe, meu pai e meus irmãos? A cesta de piquenique - formigas! - a cesta de basquete, a raia, a arraia, a arara, a aranha, a sanha, a fúria, o murro. E a picada de abelha no dedo, e a televisão que saiu do ar em 1977, justo quando o seu time foi campeão.A lagarta listrada, a gosma, o vômito, aprender o que é barômetro, metrônomo, isômero, isósceles, escaleno, equilátero, ácido. O pagamento, as contas, o salário. A cama, o descanso e o salafrário. O salafrário também conta, ele é necessário para que, livres dele, possamos ver o mundo, os seres e as coisas com maior precisão.O lápis, a caneta, o papel, o teclado. O texto, vida. Não, não se escreveu errado... Caçamba é mesmo com cê acedilhado... Um traço de giz na lousa e a borboleta da palavra pousa, e tal e coisa. Assim, assim, assim... Um gato, um filho que se espera , um prato, e um lindo botão do mais cheiroso jasmim. Escreva o que lhe der na telha, o homem, a mulher, o voo de uma abelha. E não venha me dizer que o que faltou foi coesão. É que sobrou, enquanto escrevo, a emoção.

(jornal Semanário, 13.9.13)

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